Importância da Linha de Alta Velocidade e as Redes Transeuropeias
Nos últimos meses as palavras “TGV” e “Alta Velocidade” têm dominado as altercações políticas deste país e, consequentemente, a sua vulgarização para as discussões públicas que têm desvirtuado por completo toda a grandeza deste projecto estratégico para Portugal.
Acima de tudo, importa referir que tem sido um erro enorme abordar este tema com uma conotação política. As pessoas que se manifestam contra são na sua quase totalidade adeptas das políticas de direita e antagónicas a qualquer decisão que as forças de esquerda possam tomar. Por outro lado, existe também o núcleo das pessoas que se identifica com as políticas governamentais e como tal estão de acordo. Por último, existe ainda os que ficaram a aguardar o que o líder do seu partido iria opinar sobre a matéria para também poderem exteriorizar as suas avaliações finais.
Procurei desde o primeiro momento desprezar e isolar a decisão e influência política sobre a matéria, evitar cegar com a formatação ideológica que os paladinos da desgraça teceram sobre o projecto e concentrar-me no que julguei mais importante, a obra e a via-férrea.
O Livro Branco “Uma estratégia para a revitalização dos Caminhos-de-Ferro Europeus” – COM(96)421 final
Publicado em 30.07.1996 pela Comissão das Comunidades Europeias, o Livro Branco que definia as estratégias para a revitalização dos caminhos-de-ferro europeus, defendia uma forte aposta na reestruturação gradual de toda a linha-férrea, bem como na dinamização e investimento nas empresas responsáveis pela exploração das mesmas. Apelava ainda a um caminho-de-ferro adequado para enfrentar as forças de mercado e aberto a uma maior participação do sector privado.
De um modo geral, os caminhos-de-ferro têm estado isolados das forças de mercado e da sua aposta na expansão conjunta com essas forças de mercado. Os Governos têm sido parcialmente responsáveis na medida em que não permitiram uma gestão suficientemente independente e impuseram obrigações sem compensação integral dos custos implicados. Além disso, não estabeleceram objectivos financeiros bem definidos e rígidos, optando por subsidiar e auxiliar as perdas e permitir que as dívidas se acumulassem. Os caminhos-de-ferro nunca tiveram de tomar decisões difíceis, o que não os preparou correctamente para enfrentar o seu futuro a longo prazo.
É neste contexto que cada vez mais se torna urgente não perder a boleia da Europa e de uma vez por todas entrarmos também na discussão dos mercados europeus e aproveitar a introdução dessas forças de mercado no sector dos caminhos-de-ferro.
“Freeways” ferroviários para o transporte de mercadorias
Foi factor importante o empenho que a Comissão das Comunidades Europeias teve na resolução desta matéria que facilitou o acesso aos serviços de transporte de mercadorias fosse totalmente livre. Este passo permitiu às empresas comunitárias identificar e explorar livremente as oportunidades existentes, factor essencial para meter termo à diminuta quota dos caminhos-de-ferro no mercado do transporte de mercadorias.
Foram constituídas em 1997 três TERFF (Trans-European Rail Freight Freeways), que são corredores com elevados níveis de procura e em que eram dadas garantias de prioridade e qualidade de serviço.
Em 2001, no 1º Pacote Ferroviário, foi definida a TERFN (Trans-European Rail Feight Network), com abertura a operadores da União Europeia para serviços internacionais.
O 2º Pacote Ferroviário estendeu essa abertura ao conjunto das redes a partir do mês de Janeiro de 2006 para serviços internacionais Passado um ano, em Janeiro de 2007 foi alargado para serviços domésticos.
No ano de 2004, os principais gestores de Infra-estruturas ferroviárias europeias estabeleceram a RailNetEurope, uma organização que pretende assegurar uma melhor qualidade nas ligações ferroviárias internacionais, através de um planeamento integrado das ligações internacionais, incluindo também as operações fronteiriças. Este processo passa pelo apoio a todas as fases do processo, incluindo marketing, vendas, operação e
serviços pós-venda.
Portugal está incluído no Corredor Nº 6: Koblenz / Mannheim – Nîmes – Perpignan – Barcelona – Valencia / Paris – Madrid – Lisboa e contempla a ligação ao Porto de Sines.
Fig 1 – Rede Rail-Net Europe: Conjunto e Corredor nº 6
Estas RailNetEurope estão desenhadas para receber comboios completos no padrão standard europeu e os terminais devem de estar localizados próximos das principais redes rodo-ferroviárias e com boa capacidade de ligação e escoamento. As RailNetEurope devem ainda respeitar o conceito de Freight Village/Interporto e procurar assegurar a boa ligação entre os parques industriais, as funções logísticas e as ligações intermodais.
O TGV e a Rede Alta Velocidade Ferroviária
Compreendida que está a importância que tem para a Europa incluir todos os Estados Membros nesta revolução no sector ferroviário e percepcionada que está a importância em não perdermos esta oportunidade de recuperar quase 150 anos de atraso, passamos agora ao TGV e à famosa Rede de Alta Velocidade.
Foram necessários alguns anos e muitos estudos para que fosse possível chegar a um acordo entre Portugal e Espanha com vista à ligação de Alta Velocidade. Apenas em 2003, na Cimeira Ibérica (Figueira da Foz), os então governantes Durão Barroso e José Maria Aznar aprovavam as ligações Lisboa/Madrid e Porto/Vigo que deveriam estar concluídos até finais de 2010, Lisboa/Porto até 2013 e Aveiro/Salamanca até 2015. Para uma última fase e alvo de estudos mais apurados ficou a ligação entre Faro/Huelva. À época, todo este investimento estava avaliado em 9 mil milhões de euros, custos apenas da infra-estrutura, e foi aprovado por proposta do então Ministro da Obras Públicas, Carmona Rodrigues. Todo este investimento e algum estado de euforia levava a que por exemplo Manuela Ferreira Leite afirmasse que isto seria a obra do século e uma obra que orgulharia todos os portugueses, acrescentado ainda que o TGV poderia contribuir para uma optimização do nosso PIB em 2,5%.
Muitos foram os predicados que durante muito tempo suportaram a decisão de se fazer a obra e todos eles sempre apontaram para a dinamização da nossa economia:
– Aceleração da integração ibérica;
– O desenvolvimento e o futuro de Portugal passava por uma renovada linha ferroviária e um novo terminal aeroportuário;
– Associar a economia portuguesa às economias mais ricas de Espanha, essencialmente nas regiões de Madrid e da Catalunha;
– Poder aumentar a percentagem das exportações para o mercado espanhol que nos últimos anos se cifrou na ordem dos 40%;
– O aumento das relações comerciais entre os dois países ibéricos irá dilatar o fluxo de transportes;
– Evitar que Portugal fique isolado do resto da Europa em termos ferroviários, uma vez que ficaríamos a ser o único país com a famosa bitola ibérica.
– Possibilidade de ouro em integrar o Porto de Sines nas redes RailNetEurope e potenciar a sua utilização;
– Adiar estes projectos iria permitir que os espanhóis se pudessem antecipar na construção de novos portos bem como no alargamento dos existentes, o que nos tirava qualquer hipótese de potenciar os nossos bem como passar de 10 para 40 milhões de consumidores servidos;
– Os preços do petróleo têm obrigado a repensar toda a estratégia de circulação de pessoas, bens e mercadorias, o que associado às novas leis e propósitos ambientais e de segurança, irão provocar uma crescente e incontornável substituição do modo rodoviário para o ferroviário;
– Os custos da não realização destas obras, serão num futuro próximo, bem superiores aos custos da sua realização.
– Dos cerca de 9 mil milhões de euros do valor global deste projecto, cerca de 80% serão destinados às infra-estruturas de construção civil, o que iria envolver desde as grandes às pequenas e micro-empresas.
– Em termos económicos a redução dos custos de transporte das mercadorias bem como a maior mobilidade, permitirá a Portugal esbater a sua posição periférica em relação à Europa;
– Mais valia para o sector do turismo;
No caso de o TGV não avançar, teríamos de ter em conta o seguinte:
– Acentuava-se gravemente a condição de país periférico relativamente à Europa;
– Atrasava o desenvolvimento sócio-económico do eixo oeste-atlântico, uma das regiões com maior densidade populacional da Europa;
– Acentuava-se a dependência do petróleo para o sucesso das exportações;
– Hipotecava-se a oportunidade do desenvolvimento ferroviário e dos clustrs associados ao caminho-de-ferro;
De salientar que o traçado do previsto para o TGV não contempla a ligação directa ao porto de Sines, nem hipoteticamente ao porto de Setúbal, mas essa opção também não está avalizada pelo Banco Europeu de Investimento, pelo que não se percebe o porquê do espanto de tanta opinião. Internamente teremos de repensar toda a nossa via férrea por forma a poder interligar com a rede europeia e assim procedermos, gradualmente, à migração da bitola ibérica para a bitola europeia, acção essa que obrigatoriamente terá de contemplar as ligações portuárias até aqui desprezadas.
Tecnicamente muitas são as opções equacionadas e já debatidas, desde as vias algaliadas (a tecnologia do terceiro carril, ou mesmo quatro carris), ou o recurso a comboios aptos para circular nas duas bitolas com utilização de intercambiadores.
A confusão foi lançada e as opiniões disparam de todos os cantos. De repente, todos sabem imenso de Alta Velocidade e colocam em dúvida todos os estudos de uma rede que vai crescendo por toda a Europa. Tudo em nome da política e dos interesses de afirmação partidária. Apenas deixo uma observação – não me recordo de nenhuma falha técnica em nenhum país europeu que tenha colocado em causa a credibilidade do projecto, a sua segurança ou sucesso financeiro do mesmo. Nós, os eternos Velhos do Restelo, somos realmente a excepção, os mensageiros da desgraça.
No entanto, um dado teremos como incontornável. Com este importante projecto, mais cedo ou mais tarde a nossa ferrovia dará lugar a uma nova realidade que lhe permitirá competir e interligar-se com as principais redes europeias de circulação de comboios.
Luís Santos Batista