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Contributo para o relançamento do caminho-de-ferro

No último texto aqui publicado referi que, para o relançamento do caminho-de-ferro em Portugal, seria necessário que o Estado actuasse “em três eixos fundamentais: 1º no modelo organizacional e de governança; 2º na criação da rede de bitola europeia, e; 3º na contratação e qualificação de quadros técnicos e de operacionais”. Quero, agora, ainda que de uma forma sintética, fundamentar a relevância concreta destes três eixos.

1º Modelo organizacional e de governança.

O País precisa de criar uma entidade que faça a gestão de toda actividade operacional do caminho-de-ferro, por que só assim cria as condições efectivas para este ter dimensão e massa crítica que lhe permita enfrentar a pressão técnica e económica das empresas públicas ferroviárias dos grandes países da União Europeia que, ao contrário do que por vezes se afirma, sempre mantiveram, com mais ou menos artifício, controlo total sobre actividade operacional nos respectivos países. Não podemos continuar a perder conhecimento técnico específico que assegura empregos qualificados e altamente qualificados e nos permite ter alguma autonomia num sector relevante para o País, como é o caso do sector ferroviário.

frecciargento_trenitalia_FSEsta entidade pode recuperar a designação de “CP – Caminhos de Ferro Portugueses” e deverá ter um Conselho de Administração composto por cinco elementos: Presidente, vice-Presidente e três Vogais. O Presidente deverá ser designado pelo ministro da tutela, o vice-Presidente e um Vogal são escolhidos pelo Presidente designado de entre os quadros técnicos mais qualificados do Sector, um vogal designado pelo ministro das finanças e, o outro vogal deverá ser um quadro técnico da empresa designado pela Comissão de Trabalhadores. O Conselho de Administração deverá ser nomeado em reunião do Conselho de Ministro, mas os seus elementos só tomarão posse depois de assinar uma carta de missão que os vincule ética e moralmente, à função que vão desempenhar.

2º Criação da rede de bitola europeia.

A construção de linhas totalmente interoperáveis com a rede ferroviária europeia é uma necessidade e uma inevitabilidade. É uma necessidade porque o País não pode ficar asfixiado entre o Atlântico e a Espanha; e, é uma inevitabilidade porque em algum momento alguém terá a visão de entender, que para a economia portuguesa crescer a ferrovia interoperável é, absolutamente, indispensável. E, isso tem de acontecer por duas razões fundamentais: i) por causa dos congestionamentos nas estradas europeias e, mais tarde ou mais cedo, os países atravessados pelas mercadorias portuguesas, nos TIR, irão aplicar taxas e outras medidas, (algumas delas já várias vezes anunciadas) que aumentarão o custo e dificultarão o transporte por via rodoviária; ii) por causa das alterações climáticas cujo combate a União Europeia considera relevante, apontando inclusive para a necessidade de que, uma parte significativa do transporte por via rodoviária seja transferido para o ferroviário e o marítimo-fluvial.

3º Contratação e qualificação de quadros técnicos e de operacionais.

As organizações, quaisquer que elas sejam, vivem do saber e do saber-fazer das pessoas que as integram. No caso do sector ferroviário a aquisição e consolidação dos conhecimentos específicos levam muito tempo. Da minha experiência de várias décadas, qualquer profissional que desenvolva uma actividade com forte componente técnica, tanto na operação como na construção e/ou manutenção das infra-estruturas e do material circulante, precisa de 2 anos para atingir um bom nível de competências básicas nas respectivas áreas, de cerca de 5 anos para ter competências consolidadas e, cerca de 10 anos para ter competências distintivas alcançando, então, alguns, desempenhos de excelência.

Todavia, estes processos precisam de ter as condições ambientais (isto é, tem de haver um ambiente propício) para que o potencial dos profissionais possa ser alcançado. Precisam de estar enquadrados por hierarquias com o perfil e competências adequadas e precisam de ter a formação contínua que consolide os conhecimentos adquiridos, em anteriores formações e no local de trabalho e, também, de novas formações que lhes permitam desenvolver novos conhecimentos e competências necessários ao seu desenvolvimento pessoal e profissional. Só assim o País terá profissionais altamente qualificados, num sector com relevância na mobilidade das pessoas e bens, com ganhos para a economia e com capacidade para integrar acções de cooperação internacional, nomeadamente, na União Europeia e com os Palop.

Quero, também, enfatizar as três medidas de acções concretas, que referi no texto anterior:

1ª Separação da REFER-Rede Ferroviária Nacional da EP-Estradas de Portugal.

No actual panorama ferroviário português considero que este foi o último grande erro que foi cometido, como escrevi na altura. Por isso, separar a Rede Ferroviária das Estradas de Portugal é a grande acção concreta, com impacto estratégico no sector, que o Estado tem de fazer.

2ª Reorganizar o sector criando uma entidade tipo SPGS (Caminhos de Ferro Portugueses) com quatro áreas.

Esta reorganização deverá processar-se como refiro acima (eixo 1º) e deverá ser operacionalizada nas 4 áreas mencionadas no texto anterior e que são: A) Operação (actual CP); B) Infra-estruturas (actual REFER); C) Oficinal (actual EMEF); e, D) Academia de Formação (integrando as áreas de formação actuais da CP e REFER. Cada uma destas 4 áreas deverá ser dirigida técnica e administrativamente, por um Director-Geral. Naturalmente que, para além destas 4 grandes áreas operacionais, serão criados os órgãos de apoio, como o planeamento, as finanças e contabilidade, o pessoal e assuntos sociais, compras e outros que seja oportuno organizar para um bom funcionamento do sector.

3ª Estudar com a indústria a eventual criação de um cluster ferroviário, no País.

Como referi antes, no início desta década, na AICEP, com o Dr. Basílio Horta, fizeram-se algumas reuniões, que acompanhei em representação da ADFERSIT, onde se procurava estimular a indústria a tentar criar um cluster ferroviário, aproveitando o previsto, na altura, lançamento da construção das linhas de bitola europeia. A crise que surgiu e as medidas da troika, acabaram por não permitir que uma boa ideia tivesse pernas para andar. Penso que é o momento de se avançar com mais profundidade neste assunto e consolidar uma solução em que o sector privado, com o apoio da engenharia portuguesa, possa criar uma indústria ferroviária nacional.

A concluir quero fazer dois comentários. O primeiro é sobre alteração tarifária nos passes dos transportes públicos que é, sem qualquer dúvida, uma excelente medida. O segundo é a constatação de que as recentes decisões da tutela sobre a CP e a EMEF vêm na linha do que considero adequado para o sector, mas não chega e é precisa coragem e capacidade para fazer o resto.

15, de Julho de 2019
Joaquim Polido