free web
stats

O PARADOXO DA CP

Nas últimas semanas a CP Comboios de Portugal tem sido agenda diária de primeira linha em toda a comunicação social não pelas melhores razões.

evora 01A degradação acelerada e aparentemente súbita dos serviços oferecidos pelo operador incumbente nas suas múltiplas vertentes de conforto no interior dos seus veículos, nos inaceitáveis índices de imobilização das suas frotas, na pontualidade e regularidade dos seus comboios e nos serviços de acesso e de assistência nas estações, vem suscitando um protesto generalizado dos seus passageiros em todas as linhas da rede e um clamor social inusitado contra a transportadora.

Em consequência, assistimos a um inevitável aproveitamento político desta situação com as principais forças políticas procurando culpas e responsabilidade umas nas outras num frenético jogo de passa –culpas quando em boa verdade se pode dizer que todas elas, nos últimos anos e até hoje participaram ou participam de forma directa ou indirecta na acção governativa e nas politicas de transportes adoptadas.

Para quem viveu a actividade profissional no sector e indústria ferroviária com responsabilidades de top management durante mais de três décadas e em vários ecosistemas políticos, tudo o que se está passando não constitui surpresa e só poderá surpreender por tardio dado o elevado profissionalismo e commitment do staff operacional e técnico da CP/EMEF que seguramente tudo fazem para suster este declínio persistentemente disruptivo do ferroviário nos últimos anos.

A CP Caminhos de Ferro Portugueses sofreu nos fins da década de 90 uma desverticalização das suas infraestruturas e operação, aproveitando o arranque das grandes reformas do sector ferroviário preconizadas pela EU, á semelhança do que se avançava nas outras indústrias de rede, com o objectivo de alcançar a prazo a sustentação financeira da actividade agora em processo de “unbundling”, a liberalização progressiva dos mercados com vista a incentivar as suas eficiências e a qualidade de serviço por via da concorrência.

Esta reforma “á portuguesa”, que foi levada a cabo mais por aflição (começa aqui a aparecer a preocupação do défice das contas publicas…) do que por convicção, teve os seus méritos à época entre os quais o de permitir um enorme salto na transparência e controlo da respectiva estrutura dos custos e a sua alocação pelos diversos segmentos do mercado com modelos de negócio bastante distintos e também a possibilidade de iniciar uma cultura de gestão sustentada em indicadores de desempenho e mensuração de objectivos nas principais funções corporativas do negócio.

Só que existia um pormenor: a divida histórica da CP esse “monstro” que, desde a desverticalização em 97, continua a esmagar o desempenho da gestão económica do agora operador incumbente Comboios de Portugal e a constituir um fortíssimo desincentivo a uma boa gestão em ambiente de abertura dos mercados ( O R&C de 2016 revela um passivo não corrente de 3179 M euros).

Por outro lado ainda não se atacou de forma decidida a estratégia sobre os caminhos a seguir para se entrar numa trajectória progressiva e consistente com vista ao alcance de resultados económicos positivos nos diversos segmentos (metropolitano, regional, ICs) única forma de criar condições de rentabilidade com capacidade de algum auto investimento futuro reduzindo endividamento. É bom aqui lembrar que o serviço público que deve ser um atributo social essencial deste modo de transporte em nada impede este desiderato de sanidade económica.

A UE prossegue os seus esforços reformadores para criar um contexto normativo favorável a este caminho devendo os Estados membros transpor o último pacote de Directivas (4o Pacote) para a liberalização selectiva de todos os serviços nacionais até 2020.

Muitos Estados membros desde há muito que iniciaram de forma resoluta e consequente, com mais ou menos amplos consensos nacionais, o problema central da reforma estrutural do sector ferroviário que se radica na divida acumulada e nas condições de concorrência como incentivo maior à eficiência e qualidade dos serviços. Referimos a Suécia, a Alemanha, a Itália, a Holanda e a própria França que acaba de relançar uma nova política para o sector, esta sim com forte contestação do quadro social com enorme rigidez por tradição.

Por cá e desde a década de 90 os vários governos tem procurado tomar várias medidas quase sempre envolvidas em eloquentes efabulações estratégico/politicas mas o receituário, na sua essência, é sempre a mesmo desde há muito: o recurso algo acrítico a expedientes financeiros de dotações de capital e/ou indemnizações compensatórias e um pouco ad hoc, consoante os ciclos orçamentais e o adiamento sistemático dos problemas de base económica da actividade.

Nos últimos 40 anos, a única vez que se ensaiou uma tentativa politicamente séria para uma saída consistente da situação das crises financeiras recorrentes da CP foi por via do Contrato Programa de recuperação económica em 1985 onde se traçou um conjunto de medidas concretas e calendarizadas para o saneamento e regularização das dívidas acumuladas da empresa. É justo referir aqui o empenho e entusiasmo do Dr. Murteira Nabo então Secretário de Estado dos Tansportes na formulação deste programa. Mas as instabilidades políticas e as contingências económicas frágeis do País rapidamente fizeram ruir todas as esperanças.

Voltando ao tempo mais recente o que temos hoje é uma CP que, enquanto empresa publica empresarial (EPE) e na sua condição de Operador incumbente exerce a sua actividade transportadora de serviços de passageiros em todo o território nacional, num contexto regulatório e normativo de mudança profunda de abertura dos mercados ferroviários, por força das politicas comunitárias em curso, no quadro de forte concorrência multimodal e com novos mercados de mobilidade completamente inovadores e em crescimento exponencial em todos os segmentos da procura.

Estas realidades já no terreno exigem da gestão da CP muita agilidade, flexibilidade, iniciativas de risco, inovação, modelos de negócio ousados e principalmente antecipação e decisão em tempo útil.

Infelizmente parece claro que estes atributos de autêntica sobrevivência para o modo ferroviário de 2030 não são para accionista público com posições de controlo de 100% pela simples razão de que este não está de todo vocacionado para a actividade genuinamente empresarial em economias de mercado mas sim para promover uma regulação que garanta a viabilidade económica dos operadores, a correcção das falhas de mercado e a defesa dos interesses dos consumidores.

E é assim que surge o paradoxo da CP quando em Janeiro de 2015 é atribuída a esta EPE a natureza de “entidade pública reclassificada” o que a conduz ao universo da administração pública com a sua gestão subordinada às contas públicas e às regras e procedimentos do OE.

Criou-se assim uma entidade disforme onde se chocam no seu interior duas identidades contraditórias e insanáveis: a figura de unidade empresarial a sustentar a prazo em mercados abertos e cada vez mais concorrenciais e a figura da unidade de administração pública subordinada à uma pura lógica orçamentista e da despesa pública.

Os resultados estão à vista…. Uma gestão seguramente impossível de conciliar e profundamente desincentivadora, uma incapacidade de associar o investimento ao seu retorno, uma divida sem perspectivas de resolução, uma destruição de valor dos seus activos principais com frotas de material circulantes canibalizadas e com índices de imobilização próprios de países subdesenvolvidos (25-30%), com os inevitáveis efeitos de erosão subsequentes nas cotas de mercado.

Cabe aqui relembrar as reflexões deixadas pelo Prof. Ernâni Lopes, um estudioso da relevância económica do ferroviário em Portugal e com quem tive o privilégio de discorrer sobre estes temas ainda na década de 90. Embora todas clamorosamente actuais respigam apenas uma: “ que sentido faz, a que estratégia obedece e em que termos se concretiza a intervenção do Estado na actividade do sector, face às mutações nas economias europeias e, por reflexo, na portuguesa?” (1)

Parece por vezes que o sector padece de uma persistente “tirania do status quo” em que sob a capa de recorrentes anúncios de novas políticas, de programas de modernização e dos ciclos orçamentais tudo fica um pouco na mesma na substancia, impedindo uma trajectória consistente para um adequado e crucial desempenho do sector ferroviário dado o seu potencial na geração de benefícios económicos relevantes para a sociedade.

Lisboa 2 de Setembro de 2018
Ernesto J.S. Martins de Brito
Engenheiro

(1) Para a História do CF em Portugal de 1974 a 1986: O preludio às
transformações do final do século XX , Ernâni Lopes 1993